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Por Rose Nânie Heringer da Silva
É
bastante complicada esta questão do julgamento. Não deveríamos julgar, não
teríamos o direito de julgar e muito menos teríamos, em princípio, capacidade
de julgar, uma vez que somos, nós mesmos, cheios de falhas, de vícios, de
contradições.Mas quem de nós não julga uma vez na vida?Em seu sentido jurídico,
julgar quer dizer tomar uma decisão, proferir uma sentença que absolverá ou
condenará. O juiz ou juíza, no exercício de sua função, como o próprio nome
diz, julgará um caso, isto é, seu julgamento (sua decisão, sua opinião, seu
parecer) será sempre a absolvição ou a condenação. Em seu sentido bíblico,
julgar é bastante parecido com o sentido que lhe dá o campo jurídico. Parecido,
mas não igual. A admoestação em não julgueis para que não sejais julgados é visivelmente
diferente da função de um juiz ou juíza de Direito em seus julgamentos. A
admoestação bíblica é: não devemos condenar.Mas para sermos coerentes, se não
devemos condenar, devemos absolver? Posto que se não é certo condenar, será
certo absolver?Julgar deveria envolver justiça. Se um ato for considerado
correto, que se aplique a justiça. Se for incorreto, que se aplique a justiça.
Mas como aplicar a justiça? O que entendemos de justiça? Como conseguiremos ser
justos, humanos que somos e sempre com tantos sentimentos em jogo?Ser justo é
para mim uma das coisas mais difíceis de conseguirmos, porque, no momento em
que lidamos com entes queridos, com situações delicadas ou quando não sabemos
com absoluta certeza onde está a verdade e onde está a inverdade, seremos bons,
seremos caridosos, seremos racionais, seremos razoáveis. Mas nem sempre
conseguiremos que se faça justiça. Muito poucas vezes seremos justos.Assim,
deixando de lado os sentidos jurídico e bíblico do julgar, analisemos o que
realmente acontece com todos nós – ou quase todos – no dia-a-dia. Sempre temos
ou formamos uma opinião a respeito de algo ou alguém. Em outras palavras, todos
ou quase todos julgamos (e quase inevitavelmente, absolviremos ou
condenaremos).Em Pseudologia Fantástica mencionei
que dificilmente uma pessoa não tenha dito ao menos uma mentira, uma única, ao
longo de sua vida. E agora pergunto quem dentre nós jamais julgou alguém, algum
evento, alguma coisa? Quem nunca emitiu um parecer ou formou um conceito a
respeito de algo ou alguém? E quem nunca condenou ou absolveu? Digamos que
minha discrição seja tamanha que jamais verbalizo as opiniões que formo a
respeito de alguém. Por exemplo, acho aquela moça muito desorganizada. Não falo
nada, nem para ela nem para ninguém. Tenho esse conceito e fico com ele só para
mim. Se cheguei a essa quase perfeição, isto é ótimo, mas é realmente uma quase
perfeição, pois ainda que não tenha verbalizado, formei uma opinião e julguei
em pensamento. Neste exemplo, como não gosto de desorganização, em pensamento
condenei. Vejamos um exemplo totalmente diverso: aquele rapaz é tão popular!
Não comento nada com ninguém, apenas penso. Mas ele já está absolvido, porque
ou acho a popularidade o máximo ou porque ser popular é uma virtude que eu
gostaria de ter. Em pensamento, julguei. Em pensamento, absolvi.Sempre, sempre,
ou condenamos ou absolvemos.Uma vez fiquei impressionada com o que disse o
autor de um livro quando ele afirmou que o ideal seria que apenas víssemos as
coisas ou as pessoas ou os acontecimentos. Sem pensar nada nem em nada. Sem
formar opinião. Sem dizer nada. Vejo uma árvore. Apenas vejo. Nada mais.
Nenhuma palavra ou pensamento com relação à árvore.Como achei complicado
aquilo! Aliás, como acho complicado, porque até hoje não consegui me comportar
desta forma. Se vejo uma árvore, no mínimo penso que ela é bonita, frondosa,
que dá uma sombra muito agradável. Se vejo uma coisa muito bonita, não consigo
apenas ver e não pensar: que coisa linda! E acredito que o mesmo ocorre com
essa questão de julgamentos, condenações e absolvições. Condenamos porque tudo
o que é diferente do que pensamos não nos agrada. O mesmo raciocínio vale para
a absolvição. Os termos mais adequados seriam rejeição e aceitação; porém,
usarei aqueles porque julgamento é forte, então deverá ser forte seu veredicto.
Todos temos nossas opiniões, isto é natural e inevitável. E saudável. Essas
idéias que fazemos das coisas, das pessoas e das situações vão mudando ao longo
da vida como resultado de nossas experiências, das lições que aprendemos e
através da constatação de que determinadas coisas simplesmente não importam, ou
nunca foram realmente importantes ou simplesmente deixaram de importar, pelo menos
para nós. Nossas opiniões sempre redundam em condenações ou absolvições. Desta
forma, essas condenações ou absolvições também poderão mudar à medida que
nossas opiniões forem se modificando. Note bem, usei aqui o verbo poder, ou
seja, há a possibilidade de os resultados de nossos julgamentos mudarem. Ou
não.Quando conheço determinada pessoa, é mais que natural que comece a avaliar
seu comportamento, suas atitudes, seu jeito de falar, suas crenças, suas
opiniões. De que outra forma poderei saber se ela é adequada para meu círculo
de amizades? De que outra forma poderei, se precisar conviver com ela, seja por
que motivo for, tentar os caminhos mais amenos para uma convivência
satisfatória? Ou de que outra forma poderia conjecturar a idéia de começar qualquer
tipo de relacionamento? Existem os casos de simpatia e antipatia à primeira
vista. Mas ainda esses casos muitas vezes podem se revelar da maior ilusão.
Porque tanto no que concerne ao súbito sentimento de simpatia ou antipatia,
quanto no que diz respeito a julgamentos, tais como julgar a veracidade e a
autenticidade de fatos e formar opiniões e conceitos, nem sempre a primeira
impressão (que dizem que fica) é a verdadeira, como nem sempre é certo que as
aparências sempre enganam.Por tudo isto, creio que quando se diz que não se
deve condenar, também acredito que não se deva absolver. Se condenar ou
absolver, terei como base única e exclusivamente as MINHAS verdades, tudo
aquilo que EU acho ser o correto. Condenarei ou absolverei com fundamento no
que aprendi e nas minhas opiniões DE AGORA. Todavia, quem sabe qual será minha
opinião daqui a alguns dias, ou meses ou anos? Quem sabe qual seria, hoje
mesmo, no presente, minha atitude se estivesse no lugar daquele que agora é meu
julgado e condenado, ou julgado e absolvido?Talvez, o correto, já que somos
humanos e com tantas virtudes a apreender e tantos vícios a eliminar, seja
exatamente observarmos as diferenças para NOS julgarmos, ou melhor, NOS
AVALIARMOS, e vermos o que precisamos fazer com relação ao resultado dessa
nossa avaliação.É importante que se diga, neste ponto, que não estou querendo
dizer que doravante ninguém mais vai falar nada, que ninguém vai fazer uma
crítica construtiva, dar um toque quando achar que o outro cometeu algum
equívoco ou que vamos todos nos calar e observar, observar e nos calar. Não
quero dizer, tampouco que viveremos a lucubrar, a nos afastar, a procurar
dentro de nós o pior, porque estamos certos de existir o pior dentro de nós,
para nos crucificarmos, ou descobrir o melhor, porque sabemos que existe muita
coisa boa, para nos valermos disto e nos perdoarmos sempre. Não é isto. Viver é
aprender, é ensinar, é interagir. Estamos neste mundo para viver, desistir,
insistir, perseverar, errar, acertar, aprender, ensinar, corrigir, construir,
demolir e reconstruir. Viver é muitas vezes chegar a pensar que não há mais
solução, e ainda assim reunir forças, esperança e uma dose de alegria e bom
humor para recomeçar.O que quero dizer é que não adianta apenas ficarmos com o
dedo apontado para os outros ou, de outro lado, com uma espada sobre nossas
próprias cabeças. Talvez fosse mais salutar não sermos totalmente transigentes
nem totalmente intransigentes. Nem com o outro nem conosco.A mudança é um fato.
Não pensamos hoje como pensávamos há dez ou vinte anos. Com toda a certeza não
pensaremos daqui a dez ou vinte anos como pensamos hoje. O que também não quer
dizer que tenhamos nos transformado totalmente ou que nos transformaremos
totalmente. Fala-se aqui de mudança (tão natural quanto inevitável), não de
transformação (casos extremos).Por isto, por causa da flexibilidade da vida,
antes de julgarmos (condenarmos ou absolvermos) com base apenas nos nosso
valores, nos valores vigentes, nos valores dos nossos amigos, da nossa família,
da nossa religião, deveríamos sempre nos lembrar de que no passado podemos ter
adotado aquele modo de pensar ou que podemos ter tido mesmíssima reação diante
de determinadas situações.Deveríamos parar e avaliar os motivos subjacentes a
uma determinada atitude, omissão ou opinião. Além do mais, quem sabe se no
futuro também não estaremos pensando da mesma forma que aquela outra pessoa
está pensando agora, seja porque teremos aprendido com alguma experiência que a
vida nos reservou, seja porque teremos percebido algo de incorreto em nossa
maneira de viver?Não acho que seja demais observarmos, avaliarmos, abrirmos a
mente quando necessário se fizer e prosseguirmos. Apenas prosseguirmos.
Melhores, mudados, conscientes.Se alguma atitude mexeu tanto comigo a ponto de
me fazer julgar de imediato, é porque talvez seja o momento de rever minhas
crenças, opiniões e atitudes. Se me chocou tanto, se me contrariou tanto, por
que não aproveito o momento para me questionar?Acredito que tanto a admoestação
bíblica, para que não julguemos, como o que disse o Cristo com relação aos que
queriam apedrejar Maria Madalena – “Quem não tiver pecado, que atire a
primeira pedra” – contêm em seu âmago a mensagem maior, que vai muito além
de nos rendermos às nossas limitações.Em minha interpretação, a mensagem é que
devemos pensar, avaliar e repensar opiniões, conceitos e “pecados”, e não
simplesmente jogar as pedras no chão e seguir em frente, como se nada de
diferente tivesse acontecido antes de pegarmos as pedras e depois que tivemos
que jogá-las fora.Alguma mudança terá início a partir de então. E só desta
forma prosseguiremos. Melhores, mudados, conscientes. Tendo aprendido a lição
de que não se deve condenar nem absolver, mas tomar atitudes sérias e menos
vaidosas ou levianas: julgar apenas para modificar o que estar errado. E assim
prosseguiremos para novas mudanças que virão após novos julgamentos
construtivos.
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